Lecy Pereira
Sousa
Sem
partir em busca de explicações reducionistas, mas valendo-se de fontes escritas
por pessoas com alguma preocupação de registro histórico (é incrível como uma
civilização dotada de admirável genialidade nas mais diversas áreas não tenha
se esmerado em deixar escrita a crônica detalhada do seu tempo, após a invenção
dos símbolos alfabéticos), o professor Richard Sennet, da Universidade de Nova
York e da London School of Economics, cometeu o ensaio Carne e Pedra - O corpo e a cidade na civilização ocidental.
Engana-se quem pensa que este ou aquele livro só pode interessar a este
ou aquele grupo. Uma vez publicado, qualquer livro pode interessar a qualquer
um, em que pese o nosso preconceito ou a nossa maneira discutível de elitizar o
conhecimento.
Sendo
também autor dos livros A corrosão do
caráter, Autoridade e O declínio do
homem público, Sennet nos proporciona um épico onde o profano e o sagrado
ganham a abordagem sutil e desapaixonada que esses temas merecem. O livro nos
embarca numa carruagem vitorianamente decorada, sem nos avisar que os cocheiros
são Os quatro cavaleiros do Apocalipse.
Como o corpo e a petrificação se relacionam com o poder? Como os aspectos
morais e a inobservância destes estão relacionados com o apogeu e o declínio
das sociedades no ocidente, a partir de uma pesquisa histórica? Como a
descoberta do fluxo sanguíneo implicou no modelo contemporâneo de espaço urbano
e sua mobilidade dispersiva?
Enquanto leitores, um dos maiores erros no qual incorremos é julgarmos
um texto pelo título ou pela temática. Dessa forma, nós acabamos criando os
redutos e edificando as segregações para onde são empurradas as, ditas,
minorias. Fugimos de alguns textos como o diabo foge da cruz temendo uma
mudança em nossa maneira sedimentada de pensar. Execramos qualquer tipo de
promiscuidade intelectual, muitas vezes em defesa de castelos de areia.
Carne e Pedra é um ensaio que propõe
bons questionamentos para os habitantes das megalópoles e repassa como numa
gravação em mp3 todos os erros, manias, estereótipos nos quais incorremos em
função do poder desde que o mundo é mundo e o sangue solve e coagula. Como um
bom vinho produzido ao sul da Gália, quer dizer, França, Sennet não nos quer
embriagar, mas transmitir o conhecimento dos toneis que se misturam à
substância da uva. Sempre imerso na certeza de que a sublimação do corpo terá
como interseção o simbolismo da lápide, nessa civilização que pouco aprende do
seu eterno tempo presente.