quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Elétrons da (R) existência - Trecho

@Lecy Sousa


Então, antes de bancar o biógrafo de pessoas altamente irrelevantes para a sociedade – o biografado me autorizou a dizer o que quisesse dentro da biografia dele, portanto não há nenhum risco de processo posterior – eu ficava imaginando ser um Charles Bukowski da vida. 


Eu queria viver descendo o cacete numa máquina de escrever, tarde da noite, ouvindo jazz de trompete e tomando suco de graviola gelado com vodka. Quanto mais eu descesse o cacete, mais a máquina pediria mais, mais, mais, mais, até ela sentir uma espécie de orgasmo vocabular ou sei lá o que as máquinas tendem a sentir nessas horas em que os autores praticamente “chegam lá”.


A frustração veio com o primeiro emprego numa loja de langerie. Sim, eu trabalhei numa loja de langerie (no popular, calcinha, soutien, baby doll, essas coisas). Fazia o serviço de escritório. Antes que você comece a pensar qualquer coisa menos formal, não, eu não me envolvi com a dona da loja. Ela era lésbica alfa. Entendia tudo do universo feminino. Uma empresária metacompetente, diga-se de passagem.


Segui pensando que poderia ser um Truman Capote, mas como fazer isso sem experimentar todo aquele jet-set estadunidense, aquele glamour todo, aqueles cãezinhos Shar-pei cute-cute, aquele verniz vintage que faz a gente pensar que a vida é um filme em cinemascope e ao final – tipo THE END – surge uma dezena de moças pernaltas jogando suas coxas para a esquerda, para a direita, para cima, para baixo, para o meio e terminam fazendo uma abertura chocante, prontas para o Oscar.


Não rolou. Fiquei na fissura. Decidi rabiscar quaisquer coisas. Nem competência para criar um cortiço copiado do Aluísio Azevedo eu tinha. O jeito seria deixar o tempo passar para ver se eu criava uma espécie de cor local, um pano de fundo, sei lá. Um start que me levasse ao Olimpo das letras. Isso viria se eu descobrisse alguém com uma vida eletrizante (e não tivesse nenhum medo da própria biografia – o que mais existe é gente chata pra burro censurando a própria vida, ainda que queiram ser biografados). Talvez um romance psicocibernético com mapinha de um reino perdido e tudo caísse em minha cabeça. Mas qual o quê?