quinta-feira, 15 de novembro de 2012

A lenda do intervalo

Um comentário:

Unknown disse...

Acabam de voar, em seu rosto de ferro esmaltado, gotas generosas de sangue.

Calma! Experimente passar a mão por sua face e perceba: é sangue diferente, da cor de alumínio. Uma seiva prateada escorre de pontos isolados em sua geografia facial.

Se isso o surpreende de alguma forma, experimente sentir a solidão desértica dos camelos e seus muitos estômagos em sobrenaturais tempestades de areia. Parece-lhe difícil? Então responda: alguma vez você viu o mundo de cabeça para baixo? Que tipo de sentimento perpassou sua alma?

Partindo da sua inconstante lembrança, se é que ela existe, eis que estamos pisando num chão de aço e, ao batermos nossos pés sobre ele, ouvimos o barulho metálico ecoando pelo ar. Os pássaros que atravessam o horizonte são retalhos de alumínio emitindo um barulho maquinal. E o sol, nesse instante, revela-se uma esfera gigantesca e prateada com raios semelhantes a línguas de aço ofuscantes que tocam o chão em diversos lugares.

E você com sua face glacial, lembrando das pequenas maldades de ontem. A formiga que esmagastes quando, coitada, conduzia um pedacinho de folha ao formigueiro. Aquela borboleta intensamente azul da qual você subtraiu uma asa. Lembra da página de um livro sutil de Lígia Fagundes Teles que você, num ato despirocado, arrancou, embolou e jogou pela janela? Talvez eu não devesse falar sobre isso, visando poupar o leitor desses estranhos detalhes. Importa mais o assombro provocado pelo surgimento repentino de pesadas nuvens de chumbo seguidas por seus raios fulminantes. O céu é mesmo uma caixa inoxidável de surpresas apocalípticas. E agora, os pingos, alongados de uma chuva de prata cai uniforme. Outra vez o barulho da melancolia. Cheiro de terra molhada. Ruas tão vazias. Todo mundo morreu naquela tarde e restou o tinido dos pingos na lata.

E você com esse rosto duro vendo a dança das facas, o grito ensandecido e sabido a prazer do criminoso esvaziando o pente de balas da sua metralhadora sobre seus irmãos, os corpos tombando como se de palha fossem e o desespero de mães descabeladas vendo falecer as, outrora, sementes plantadas em suas entranhas. A lua banhou-se na cor púrpura do sangue de inocentes e corrompidos. Mas seus nervos são de aço trançado e bem suportam o balé da agonia humana.

Claro, também pudera, você não passa de uma homenagem ao soldado desconhecido, forjada no mais puro aço e postada nessa praça de guerra, enquanto eu, sentado num banco próximo te lanço olhares indagadores ao mesmo tempo em que leio um livro qualquer. Dizem que a saída mais fácil para um escritor em sua narrativa é transformar tudo é sonho e aí tudo se explica, mas acho que estou acordado e minha face acaba de ser atingida pela asa cortante de um pássaro laminado e o sangue voa em seu corpo. Nada disso lhe importa e nem romperá a dureza com a qual você enxerga o mundo.

Com esse peito de gladiador cozido em fornalha e meu sangue escorrendo em seu rosto lívido responda: você sabe o que é sentir dor?


Lecy Pereira Sousa

Acho que eu tinha uns 14 anos quando li esta. Influenciou-me muito na época, eu ficava imaginando de qual cabeça poderia emergir tamanha viagem. Gostei tanto que este texto veio pulando, então, de um hd para outro conforme trocava de computador, junto com milhares de outros textos de autores diversos. Hoje, mais de dez anos depois, enquanto fuçava um cd velho encontrei e li uma vez mais. toda uma época surgiu em minha memória! Foi bem nostálgico. Obrigado, parabéns pelo talento e siga agraciando-nos com o mesmo =]