domingo, 25 de setembro de 2011

Augusto dos Anjos por Sebastião Nunes



FOTO: Colagem sobre imagens de Augusto e seus arredores

Grandes poetas não se fazem com grandes biografias, isto é, grandes poetas quase nunca têm tempo para viver de verdade
Colagem sobre imagens de Augusto e seus arredores
Grandes poetas não se fazem com grandes biografias, isto é, grandes poetas quase nunca têm tempo para viver de verdade
A personalíssima poesia do inexplicável Augusto dos Anjos (I)
Vira e mexe, estou de volta ao fascinante universo da poesia e, nele, aos mistérios insondáveis dos poetas inaugurais. Aqueles que, se não mudaram o mundo, mudaram pelo menos nossa maneira de ler o mundo em seus infinitos significados. Certo, bilhões e bilhões de pessoas nunca leram poesia alguma, mas isso não diminui seu mérito. Como escreveu o físico João Torres de Mello Neto, a propósito da educação científica, seu propósito "é dar às pessoas uma percepção mais rica da realidade, permitir que se maravilhem diante dos detalhes do mundo, fazê-las enxergar - no dizer do poeta inglês William Blake - o infinito num grão de areia". Tropeçamos em maravilhas o tempo todo, sem ver. Gastamos a vida com ninharias (minha casa, meu carro, minhas economias, minhas viagens) e - afinal - com meu câncer, meu enfarte, meu AVC, sem que haja tempo de enxergar o que merece ser visto, de um inseto multicolorido a uma folha multifacetada. De ver a vida, em suma.

Não me refiro aos miseráveis, para os quais um teto de lata é uma maravilha. Nem aos emergentes das classes D e E, que se maravilham diante de uma sucata de carro. Muito menos aos velhos cansados, quando podem se dar ao luxo - depois de anos e anos de batalha - de uma viagem de férias e lazer. Não. Estou pensando, como sempre, na banalidade existencial da classe média, em sua estreiteza mental, sua inteligência tacanha e sua cultura nivelada por baixo. Nascer, crescer - ser exibido com orgulho aos parentes - se idiotizar, casar, tentar enriquecer, gerar filhos tão idiotizados quanto, e afinal morrer, com parentes e amigos dizendo, entre lágrimas, no velório: "Era uma pessoa boníssima, nunca fez mal a ninguém". Na verdade, não fizeram mal nem bem, só passaram pela vida e não viveram. Mas o assunto é poesia, que não tem nada a ver com mediocridade. Vamos lá?

O SOTURNO DESENGONÇADO
Augusto era um sujeito esquisito. De família paraibana mais ou menos rica (donos de engenho), nasceu e cresceu no Engenho Pau d’Arco, em 1884. Como era comum na época, foi educado pelo pai, com quem manteve uma relação ambígua de amor e ódio, Freud explica. Bacharelou-se em direito no Recife em 1907 e, em 1910, casou-se com Ester Fialho. Precoce, aos sete anos já versejava. Versos de criança, é claro, que continuariam como versos de adolescente até que explodisse o poeta estranho e rebuscado. Isso aconteceu já no Recife, depois da leitura de Herbert Spencer, Ernst Haecker e Schopenhauer, além da Bíblia, que só serviu para aumentar o conteúdo explosivo da mistura.

Mas a genialidade de Augusto tem de ser buscada em outras fontes. Centenas de estudantes brasileiros da época leram os mesmos autores, frequentaram faculdades - e não se tornaram grandes poetas. Nem poderiam. Augusto também frequentou festinhas de aniversário, saraus, teve amigos e amigas, além de muitos parentes de que gostava, e que gostavam dele, inclusive irmãos, mãe e padrasto, depois da morte precoce do pai. E compôs versos elogiando o nariz desta, os olhos daquela, a cabeleira da outra, enfim, fez o que faziam todos os galanteadores da época: versos de arranjar namorada. Todos foram devidamente publicados mais tarde, na maçaroca horrorosa que se chama "Obra completa", coisa que devia ser proibida. Como misturar o poeta maduro com o principiante, o trágico-amargo com o sentimental, o profundo com o piegas e - especialmente - o poeta de verdade com o prosador de meia-tigela que sempre foi?

O POVO SALVA O POETA
Fausto Cunha, também nordestino, conta que ouviu falar de Augusto quando trabalhava como fiscal numa fábrica de tecidos no interior de Pernambuco. Segundo ele, um fiscal chamado Elias, recitava o "Eu" (único livro publicado em vida por Augusto) quase de cor, declamando poemas inteiros. Todos ouviam, impressionadíssimos. Fausto continua: "Hoje me espanto um pouco pelo fato de ninguém se rir quando Elias recitava estes versos grotescos: ‘Tome, Dr., esta tesoura, e corte/ Minha singularíssima pessoa". E completa: "O povo consumiu umas trintas horrendas edições do ‘Eu’. Alguns criticos elogiaram reticenciosamente o poeta, outros abominaram o seu gosto, os parnasianos desdenharam daqueles versos rudes (rudes por serem um produto extremo da saturação parnasiana), mas o povo continuou fiel à sua misteriosa admiração, resistindo à pressão modernista e ao analfabetismo - o maior inimigo e o maior aliado da poesia de Augusto dos Anjos. (...) Não, Augusto dos Anjos não deve coisa alguma à crítica literária deste país".

AMIGOS BIÓGRAFOS E O POETA
Até 1960, por aí (Augusto morreu em 1914, aos 30 anos), pouca gente ouvia falar ou conhecia a obra do marginalizado. Se os parnasianos o repudiaram, os modernistas fizeram pior: fizeram de conta que não existia, a maior das injúrias e a mais letal das armas contra qualquer tipo de obra, boa ou ruim. Enfim, foram quase 50 anos de esquecimento, exceto pelas edições baratas e pela boca do povo, que teimava em repetir-lhes os versos.

Mas houve algum rebuliço, pequenos movimentos na superfície da lagoa, que não chegaram a provocar interesse maior (exceto na província), mas serviram para preservar-lhe a memória, a biografia e os versos.

Os dois principais responsáveis por isso foram Órris Soares, que publicou em 1920, pela Imprensa Oficial da Paraíba, "Poesias Completas", precioso conjunto do que Augusto produziu. Livro defeituoso, nada crítico, prejudicado pela amizade e pela proximidade, mas fundamental para o conhecimento do poeta. Livro que tem descrições assim: "Foi magro meu desventurado amigo, de magreza esquálida - faces reentrantes, olhos fundos, olheiras violáceas e testa descalvada. A boca fazia a catadura crescer de sofrimento...". Etc. O segundo foi o já renomado Gilberto Freire, num artigo publicado em inglês na "The Stratford Monthly" (1934), em que chegou a afirmar: "Não houve nunca na literatura brasileira expressão mais viva do gosto da introspecção pessimista que os poemas de Augusto dos Anjos". E ainda: "Ao contrário de Bilac, que o crítico norte-americano Isaac Goldberg chama em um de seus estudos ‘um fauno de casaca a brincar com náiades de vestido de seda’, Augusto dos Anjos não soube nunca o que fosse a alegria do sexo. O sexo sempre lhe pareceu um dos aspectos mais sujos e tristes da vida".

Talvez esteja por aí a explicação para o exotismo dessa poesia que durante tantas décadas esteve na penumbra. Voltarei ao tema na próxima semana.


O escritor SEBASTIÃO NUNES escreve no Magazine aos domingos.

Fonte: http://www.otempo.com.br/otempo/colunas/?IdColunaEdicao=16458

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