quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Existência estomacal

By Lecy Pereira Sousa
 

 
Por todos os lados que se quisesse olhar, o vislumbre era único. Tudo eram bocas cheias e fechadas pela mastigação. O mundo se resumiu numa única coisa: vontade de comer! Muito embora, nem sempre essa vontade fosse concretizada. Dormia-se, acordava-se, lia-se e escrevia-se, odiava-se e amava-se somente para comer. Afinal, o que poderia garantir uma sobrevida, uma continuidade, um orgulho incorrigível?
 
Comiam as paredes de concreto, as árvores dos jardins , as placas comemorativas, os bustos de bronze de mortos ilustres e bigodudos. Numa incessante antropofagia, comiam os homens, as mulheres e os andróginos . Não havia traça ou verme que se comparasse. Devoravam as esquinas, as manequins das vitrines e as vitrines de sobremesa.
 
Um bom título para narrar a ânsia febril por consumo seria  Nascidos para comer. Por todos os lados que se quisesse olhar, como num espelho, só se viam olhos vazados de fome e bocas incrivelmente nervosas. Não havia nada que pudesse matar a fome .
  

Um comentário:

G.A. Barulhista disse...

Muito bonito !Em todos os sentidos. Há tempos querendo ler um texto sobre a fome nesse formato. Em breve lhe contarei uma idéia nesse sentido. Abraço!O blog está limpo e por isso mesmo, lindo.
Sempre bom te ler.
Até !